“Alguns me chamam de polvo, pois só sei trabalhar com muitas mãos”, diz Anamaria Cavalcante, única secretária à frente da Sesa

8 de março de 2022 - 10:42 # # # #

Texto: Letícia Maia | Fotos: Letícia Maia, Elon Nepomuceno e Divulgação/Sesa


Titular da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) entre 1992 e 1994, Anamaria Cavalcante atravessou a epidemia de cólera no início da década de 1990 e participou da erradicação da poliomielite

Anamaria Cavalcante e Silva: uma personalidade à frente do seu tempo. A primeira e única mulher a assumir a titularidade da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) coleciona, no rol de suas memórias, grandes desafios e expressivas conquistas, a exemplo da implantação pioneira do Programa Saúde da Família (PSF) no Brasil, da erradicação da poliomielite e da redução da mortalidade infantil. A sensibilidade feminina, associada a uma inquestionável habilidade estratégica e articuladora, foi importante aliada durante a sua liderança diante da pasta estadual, iniciada em 1992 e concluída em 1994.

À época, algumas circunstâncias se impuseram, incitaram a administração pública e demandaram respostas assertivas. A epidemia de cólera, por exemplo, instalada no território cearense nos primeiros anos da década de 1990, chamou a atenção das autoridades locais.

“A doença chegou à América pelo Peru e avançou para o Brasil pelo Amazonas e pelo Pará. Um cearense, acometido durante uma viagem, veio para o nosso Estado e foi hospitalizado em Quixadá, onde ainda não havia saneamento adequado. Resultado: a condição se espalhou como estopim de pólvora”, lembra.

Nessa perspectiva, o surto de diarreia e de desidratação exigiu providências imediatas e eficazes. “Eu transferi a Secretaria da Saúde para o município de Quixadá. Fui com uma equipe para reduzir as dificuldades de comunicação tão comuns ao período. Lá, montamos o Monitoramento das Doenças Diarreicas Agudas (MDDA), adotado pelo Ministério em seguida”, conta.

Emocionada, Anamaria enaltece a atuação dos agentes comunitários de saúde (ACSs) diante de um cenário composto por muitas internações. “Eles nos ajudaram a evitar índices drásticos de mortalidade. Houve cenas incríveis, das quais não me esqueço, de um profissional carregando um velhinho num carro de mão para salvar uma vida. E salvou. Porque a desidratação era tão abrupta, que o paciente poderia morrer”, recorda.

Simultaneamente, o preocupante número de casos desencadeou a instalação de ambientes para terapia de reidratação oral. “Essa experiência eu trouxe do período em que fui gestora de unidade de saúde do Ministério da Previdência Social. O logotipo apresentava uma criança sendo hidratada por uma colher – e não pela veia. Isso salvou muitos idosos”, relata.

A iniciativa, também implantada no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), auxiliou a recuperação de muitos. “Nós pegávamos uns panelões do refeitório e fazíamos 50, 80 litros de soro oral. Era impressionante contar com a colaboração de todos”, considera.

Filha de jornalista, apaixonada por Comunicação, a médica se apropriou das referências coletadas ao longo da vida e lançou mão de estratégias didáticas e ilustrativas para informar a população acerca dos cuidados necessários. “Antes de optar pela Medicina, eu considerei fazer Jornalismo porque sempre tive meu pai como espelho. Eu adoro o Marketing e a Comunicação. Embora seja adepta da tecnologia, sempre gostei de elaborar documentos físicos. Então, além dos esforços sanitários, nós criamos conteúdos informativos e debelamos a situação”, revela.

Entretanto, uma epidemia de dengue, instalada no Brasil entre os anos de 1993 e 1994, atribuiu uma nova responsabilidade ao Governo do Ceará. “Nós perdemos algumas pessoas, sobretudo, as imunossuprimidas. Até Ciro Gomes [governador entre 1991 e 1994] foi acometido pela dengue hemorrágica. Para atravessar mais um momento duro da gestão, trabalhamos em equipe e contamos, de novo, com os agentes de saúde e de endemias”, reconhece.

Programa Saúde da Família (PSF): o início

Dentre os grandes marcos alcançados ao longo de sua gestão à frente da Sesa, a implantação do Programa Saúde da Família (PSF) no Brasil ocupa patamar referencial. A ideia, inicialmente pensada para Fortaleza, foi, primeiramente, executada em Quixadá como projeto-piloto e posteriormente apresentada ao Ministério da Saúde.

“No início de 1994, durante a presidência de Itamar Franco, lançamos o PSF no auditório Emílio Ribas. A iniciativa veio fortalecer todo o sistema de SaúdeMesmo com todos os percalços e dificuldades de financiamento, nosso programa de Medicina de Família é o maior do mundo”, assegura.

Para cada dez agentes, uma enfermeira supervisora era contratada pelas prefeituras, ampliando a cobertura e as oportunidades laborais. As diretrizes, inspiradas pelo ex-secretário da Saúde cearense Carlile Lavor, foram consolidadas por meio de constantes diálogos entre os atores envolvidos.

“Ao longo da minha gestão, viajei de carro pelos municípios do Ceará, conversei com os secretários municipais e solicitei periódicas reuniões com os ACSs, pois sabia que eles cuidavam das famílias e eram os maiores representantes das comunidades onde trabalhavam”, contextualiza.

A experiência, documentada no livro Saúde da Família, Saúde da Criança, relata o caso de Sobral e dá vida à tese de doutorado de Anamaria.

Auxílio a estados brasileiros

Com a ampliação do número de ACSs, durante a epidemia de cólera na Amazônia, o Ceará emprestou profissionais para cuidar das populações ribeirinhas. “Nesse momento, foi constatada a importância dos agentes para um Brasil que tinha poucos médicos”.

Escola de Saúde Pública do Ceará: legado para a posteridade

Antes de assumir a titularidade da Sesa, a vivência adquirida na London School of Tropical Medicine, escola de Saúde Pública mais antiga do mundo, incorporou inspirações importantes à visão de Anamaria.

“Fiz um curso sobre saúde urbana durante um mês e, partindo do entendimento de que é preciso formar pessoas, voltei impregnada pela vontade de edificar e implantar uma escola de Saúde Pública no meu Estado”, compartilha.

Os recursos remanescentes do Projeto Nordeste, estimados em um milhão de dólares, possibilitaram a negociação de um novo financiamento junto ao Banco Mundial. “Quando cumprimos todas as metas e entregamos novos equipamentos públicos de saúde, sobrou dinheiro. Foi um acaso da sorte e da boa gestão. Nós conseguimos demonstrar que um Estado pobre como o nosso não poderia devolver atributos financeiros. Deveríamos investir em capacitação profissional. E os financiadores concordaram”, rememora.


Escola de Saúde Pública do Ceará Paulo Marcelo Martins Rodrigues foi criada em julho de 1993

Nessas circunstâncias, a pedra fundamental da Escola de Saúde Pública Paulo Marcelo Martins Rodrigues (ESP/CE) foi colocada em fevereiro de 1993 e as obras foram concluídas em dezembro do mesmo ano, estruturando o primeiro equipamento do Nordeste voltado à finalidade. “Foi o exato período de uma gestação. É um legado importante do ponto de vista físico, além de ser uma instituição formadora de recursos humanos para o Ceará e para o Brasil”, celebra.

Erradicação da poliomielite

Ainda durante a sua gestão, Anamaria experimentou a sensação de participar de importante e simbólico momento brasileiro: a erradicação da poliomielite. “Recebi o certificado das mãos do então presidente Itamar Franco. Foi a única vez em que entrei no Palácio do Planalto. Isso me deixou muito feliz como mulher, como mãe e como pediatra”, descreve.

Prêmio Maurice Pate pela redução da mortalidade infantil

Em relação aos indicadores em saúde, o Ceará foi agraciado, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque (EUA), com o prêmio Maurice Pate pela redução da mortalidade infantil em ⅓ durante um período inferior a quatro anos.

“O Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] queria demonstrar esse exemplo para o mundo em desenvolvimento. Isso foi possível graças à forte decisão política tomada ao longo dos governos de Tasso Jereissati e Ciro Gomes. Para nós, gestores, significou um grande estímulo para continuar avançando”, comemora. Segundo ela, a luta continua.

“À época, nós tínhamos uma mortalidade infantil de três dígitos. Ou seja, 116 crianças morriam antes de completar o primeiro ano de vida. Hoje, lutamos pela mortalidade de um dígito”

Paralelamente, os esforços desprendidos entre 1992 e 1994 foram categóricos e garantiram a implantação de um hospital municipal em 100% das cidades do Ceará. “Hospital é algo muito forte. Funciona 24h, como hotel e aeroporto. De tudo o que já fiz na vida, o que mais me emociona é ter vivido em hospital, onde eu aprendi Medicina”, diz.

Negociação, empatia e diálogo

A disposição para o diálogo, inerente à personalidade da gestora, permitiu maior valorização profissional aos médicos do Ceará. Diante da possibilidade de uma greve da categoria em virtude de reivindicação salarial, fora instituída uma Lei de Gratificação por Mérito. “Nesse sentido, nós passamos a considerar a residência, o mestrado e o doutorado como fatores diferenciais. A solução foi possível porque, além de tudo, herdamos uma Secretaria bem estruturada”, pontua.

Missão

Revisitando o caminho percorrido, Anamaria reflete acerca das premissas indispensáveis ao sucesso de qualquer iniciativa.

“Trabalhar em equipe, estimular pessoas e descobrir talentos são fundamentais. Eu sou muito inquieta e, ao mesmo tempo, não sei fazer nada sozinha. Alguns me chamam de polvo, pois eu só sei trabalhar com muitas mãos”, sorri, bem-humorada

A constante luta por uma assistência pública de qualidade, estabelecida a partir da decisão de se tornar médica, segue até os dias atuais. A trajetória profissional da gestora agrega ampla diversidade de funções, ambas indispensáveis à construção de repertórios exemplares.

Pediatra, mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Anamaria doou, por quase dez anos, o seu talento e a sua dedicação à direção do Hospital Infantil Albert Sabin (Hias).

Entusiasmada pelo propósito de capacitar profissionais da Saúde para o pleno exercício de suas funções, abraçou a docência universitária e compartilha, diante de graduandos e mestrandos, a experiência adquirida ao longo de suas mais de sete décadas de vida. Aos quase 75 anos, gere, ainda, a Coordenadoria de Educação em Saúde, Ensino, Pesquisa e Programas Especiais da Prefeitura de Fortaleza.

Neste Dia Internacional da Mulher, Anamaria registra o sentimento extraído do próprio exemplo, sobretudo, diante das novas gerações. “Quem deseja se aventurar na gestão pública da Saúde precisa criar uma equipe de bom nível, composta, principalmente, por pessoas abnegadas. O que nos move não é o vil metal. É você poder olhar no olho dos seus filhos, dos seus netos, e ter lições a compartilhar”, conclui.