Entrevista: Equipamentos respiratórios, pandemia e inovação

23 de abril de 2020 - 12:08 # # # # # #

Entrevista: Ariane Cajazeiras/ Daniel Araújo Edição: Jackson de Moura Arte: Júlio Lopes

Um dos focos da crise que envolve a Covid-19 em todo o mundo, a falta de ventiladores mecânicos não é uma exclusividade brasileira. Esses equipamentos são essenciais para a manutenção da vida de pacientes com estágio avançado da doença e a falta deles é sentida em todo o mundo, já que as fábricas não dão conta da demanda crescente desses caros equipamentos, em meio à pandemia.

No Ceará, uma iniciativa da Secretaria da Saúde do estado, através da Escola de Saúde Pública (ESP/CE), em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) e outros órgãos voluntários, repara ventiladores que estejam sem uso, cadastra-os e distribui nas unidades de saúde necessitadas para tratamento da Covid-19. Até o momento, pelo menos 53 ventiladores foram cadastrados, estando 30 em reparo e 23 foram entregues.

Pneumologista e intensivista, o médico Marcelo Alcantara Holanda, superintendente da ESP/CE, trabalha na área há quase 30 anos. Para ele, esse é um momento decisivo na história da ventilação mecânica, como foi em 1952, com a pandemia da Poliomielite. Foi a época em que nasceu esta tecnologia no mundo. “Agora é o momento disso se reinventar”, explica. Acompanhe a entrevista:

ESP: O que são ventiladores mecânicos?

Marcelo Alcantara: Basicamente são máquinas de suporte à vida que garantem o bombeamento de gás oxigênio, ar comprimido, para dentro dos pulmões e permitem a saída desse ar, que é produzido pelo próprio paciente, para o meio ambiente. Ou seja, o ventilador mecânico auxilia a respiração do paciente. E é importante ficar claro, ele não é um respirador. Ele não respira no lugar dos pulmões dos pacientes. Na verdade, ele é uma bomba que auxilia esse processo ocorrer dentro do pulmão do paciente. Esse é um ponto essencial. Então, o nome correto é ventilador mecânico pulmonar e não respirador.

ESP: O que é a Central de Ventilação Mecânica? Por que ela teve de ser criada nesse momento de crise?

MA: A Central de Ventiladores Mecânicos e Equipamentos Respiratórios (CVMER) foi criada para suprir uma necessidade de se ter um inventário de todos os ventiladores mecânicos existentes no estado do Ceará na rede hospitalar. Ela foi criada para atender a uma necessidade que ficou premente com a Covid-19: de sabermos e conhecermos todos os ventiladores mecânicos da Rede Estadual de Saúde que estão disponíveis. Ou seja, fazer um inventário. Em segundo lugar, para poder, vendo esse inventário, poder realocar da maneira mais equitativa, da maneira mais racional possível, naquelas unidades que precisam mais dos melhores equipamentos nesse momento de crise e posteriormente, evidentemente. Um terceiro ponto é que os ventiladores precisam ser reparados, consertados. Então, em um único ambiente, com parceiros na área de eletromecânica, da área industrial, nós podemos reparar os ventiladores quebrados e os colocarmos para funcionamento de forma segura. E mais dois pontos: precisamos treinar as equipes no uso dos ventiladores e ao mesmo tempo não esquecer de fazermos pesquisas e desenvolvimento tecnológico nessa área, que se provou ser absolutamente estratégica na saúde. Então, o Brasil está totalmente dependente de alguns componentes e da importação de ventiladores e nós temos que ter, pelo menos, a capacidade de nos organizarmos para levar esses equipamentos para a ponta de um modo mais eficiente. E que chegue realmente aos pacientes e para os profissionais de saúde.

Foto: Deborah Muniz

ESP: O que pode ser doado? Quem pode se engajar nessa campanha?

MA: O bacana dessa central de ventiladores é que ela nasceu já de uma forma de parceria. Entre o Estado, através da Escola de Saúde Pública do Ceará e da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, além da Federação das Indústrias do Estado do Ceará, Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) e outros órgãos voluntários que estão se agregando a esse processo. O resultado: a gente está tendo apoio para adquirir componentes, recebendo doações. No fundo, qualquer entidade, seja entidade jurídica ou até um indivíduo, pessoa física, pode se aproximar da gente, fazer um contato através do site, ou nosso telefone, e através disso ele pode doar qualquer equipamento respiratório que ele tenha. Inclusive equipamentos de uso domiciliar podem ser doados, se não estiverem em uso. Aparelhos de uso de ventilação mecânica domiciliar, se alguém quiser fazer esse apoio.

ESP: Nesse momento de crise, também é necessário que as pessoas sejam capacitadas para operar essas máquinas. Como está sendo feito esse treinamento? Qual o papel da ESP/CE nisso?

MA: O manejo correto dos ventiladores mecânicos, por serem máquinas muito complicadas, ele requer expertise. Ele requer que a pessoa tenha um treinamento específico para essa área. É como um avião que você tem de treinar um piloto para conduzi-lo. Na ESP/CE, a gente têm feito treinamentos presenciais na área respiratória e já temos a programação de um treinamento online através de simulação virtual em que o indivíduo manipula um ventilador mecânico e o paciente reage às alterações que o profissional de saúde faz (médicos, fisioterapeutas e de enfermagem). Estamos programando mil pessoas a serem capacitadas. Mil profissionais de saúde. O que é um número muito bom, porque compõe aquelas pessoas da linha de frente. Pessoas que estão cuidando de pacientes com a Covid-19. Esse curso já está praticamente pronto para ser lançado.

ESP: Em paralelo a isso, já existem pessoas sendo treinadas presencialmente?

MA: Em paralelo a isso, já foram capacitadas mais de mil pessoas em intubação, em suporte ventilatório básico, em procedimentos à beira do leito.

ESP: As pessoas às vezes ficam questionando por que já não se tinha esses equipamentos. Agora que há uma crise mundial, não se consegue comprar. Por que se tem essa crise? Não seria possível a gente desenvolver equipamentos desse tipo localmente?

MA: Essa crise existe porque há uma dependência crescente de ventiladores mecânicos para o sistema de saúde. O sistema de saúde só cresce. Ele não diminui. Ele é um mercado, inclusive, que vem se expandindo no mundo inteiro. E as complexidades das doenças, dos tratamentos, das cirurgias só aumentam. Resultado: tem se expandido a necessidade de ventilação, porém, a indústria internacional e nacional ela não consegue dar uma resposta, se não houver uma política específica para essa finalidade. Essa politica ela tem de ser de Estado. Então, as empresas inovam, produzem equipamentos interessantes, mas o Estado deve ser o indutor e o regulador desse processo de modo a dinamizá-lo, de modo a apoiá-lo. E fazer com que não haja falta de ventiladores, sobretudo,em grandes catástrofes. Por exemplo: um terremoto, uma pandemia, um tsunami, enfim, um ataque terrorista. Coisas desse tipo fazem com que a necessidade de ventiladores imediatamente aumente. E se a gente não tiver uma reserva, um estoque de ventiladores, a gente está sempre sujeito a problemas. Por que não se faz esse estoque? Porque é muito caro. Eu precisaria de um investimento altíssimo para comprar máquinas que chegam a custar mais de cem mil reais para colocar num contêiner, ou para colocar em estoque. Não sei se a sociedade está preparada pra viver isso também. Resultado: esse momento de crise faz com que a gente pense em uma estratégia de inovação, de desenvolvimento de ventiladores da indústria nacional, de tecnologias outras que possam evitar até a necessidade de intubação, como máscaras, dispositivos que dão oxigênio e pressão sem precisar intubar o paciente e colocar no ventilador também. Então, uma crise é uma coisa muito ruim, mas ela também proporciona a inovação. Ela proporciona ideias criativas em forma de colaboração para solucionar os problemas. Esse é o momento da colaboração, da reflexão coletiva. E ai você constrói uma solução interessante e que pode ser muito importante para nossa sociedade.

ESP: É um assunto que lhe toca pessoalmente porque é uma área em que o senhor trabalha há muito tempo. O que acha que a partir daqui vai mudar nesse quesito de inovação na área?

MA: Olha, eu espero, sinceramente, que a gente passe a tratar a ventilação mecânica como algo estratégico. Que a gente possa inovar e desenvolver novos equipamentos mais acessíveis, mais baratos, mais fáceis de usar, sem precisar ter tanta complicação no treinamento e que possa permitir uma equidade no processo. Por que quem é que tem menos acesso aos ventiladores? População mais frágil. Enquanto a população que tem recursos econômicos, ela consegue ventiladores porque ela têm acesso às UTIs melhores e é la que estão as melhores máquinas. No fundo é uma questão de saúde pública e essa questão deve nortear as inovações para que a maior parte da população, da sociedade, tenha acesso a esses equipamentos. Eu trabalho com isso há 30 anos. E esse é um momento decisivo na história da ventilação mecânica, como foi em 1952 com a pandemia da Poliomielite, quando nasceu a ventilação mecânica no mundo. E quando nasceu a ventilação mecânica, nasceu a UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Agora é o momento disso se reinventar. De nascer uma nova ventilação mecânica que inclua políticas de saúde pública no seu seio, no seu eixo de desenvolvimento, inclusive, tecnológico. Acho que é uma oportunidade, sim, de a gente trazer essa contribuição agora.

SERVIÇO

Central de Ventiladores
Endereço: Senai Jacarecanga (Rua Júlio Pinto, 1873, Jacarecanga, Fortaleza, Ceará)
Contato: (85) 3421.5309
E-mail: centralventiladores.ce@gmail.com
Acesse AQUI a página da Central de Ventiladores Mecânicos e Equipamentos Respiratórios (CVMER)